Por Cristine Camilo Dagostin Dal Toé e Nilton Cesar Flores
RESUMO: Este estudo aborda a importância da prova pericial no processo criminal minerário, destacando a necessidade de uma abordagem técnica e especializada para determinar a materialidade e autoria dos crimes de lavra ilegal de recurso minerários e demonstra que a prova pericial é indispensável para assegurar a justiça no julgamento dos crimes de usurpação mineral, protegendo os direitos dos acusados e promovendo um sistema de judicial justo e equitativo, especialmente a luz do princípio do in dubio pro reo, que favorece o réu em caso de dúvida.
Palavras-chave: Crime Ambiental. Crime de Usurpação Mineral. Prova Pericial. Princípio do in dubio pro reo.
ABSTRACT: The article addresses the importance of evidences in criminal mining proceedings, highlighting the need for a technical and specialized approach to determine the materiality and authorship of illegal mining crimes. The article concludes that evidence is indispensable to ensure justice in the prosecution of mineral usurpation crime, protecting the rights of the accused and promoting a fair and equitable judicial system, especially in light of the in dubio pro reo principle, which favors the defendant cases of doubt.
Keywords: Environmental Crime. Mineral Ususpation Crime. Evidence. In dubio pro reo principle.
Considerações iniciais
A lavra ilegal de recursos minerários da União caracteriza-se como crime tipificado tanto no art. 55 da Lei 9.605/98, como no art. 2º da Lei nº 8.176/91 (Crime de Usurpação).
A possibilidade de concurso formal dos referidos tipos penais já não traz mais discussões judiciais ou acadêmicas, estando consolidado o entendimento de que os dois crimes concorrem, não se caracterizando o conflito aparente de normas.
Os crimes protegem bens jurídicos distintos. Enquanto o tipo do art. 55 da Lei n. 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais) tutela o meio ambiente quanto aos recursos naturais encontrados no solo e no subsolo, o tipo previsto no art. 2º da Lei n. 8.176/91 tem por objeto a preservação de bens e matérias-primas que integrem o patrimônio da União.
No âmbito do processo criminal minerário, a prova pericial assume papel crucial para a determinação da materialidade do delito e da autoria, sendo fundamental para a formação da convicção do julgador. A especificidade técnica das infrações minerárias exige uma abordagem especializada, onde a perícia se torna a principal ferramenta para elucidar os fatos.
A tutela penal é a ultima ratio. Assim, o cuidado na apuração de um delito de Usurpação deve ser feito obedecendo critérios claros na busca da verdade real e da identificação de elementos materiais que evidenciem a ocorrência do crime de mineração ilegal.
Suposições, presunções e constatações por provas testemunhais não suficientes para levar o juiz a ter convicção e efetuar a condenação em um processo criminal.
Neste artigo vamos identificar os elementos técnicos necessários para caracterização do dolo e especialmente da materialidade dos crimes previstos no art. 55 da Lei n. 9.605/98 e art. 2º da Lei n. 8.176/91.
A prova pericial nos crimes de usurpação – necessidade e requisitos
O elemento subjetivo dos crimes dos arts. 55 da Lei 9.605/98 e 2º da Lei 8.176/91 consiste na vontade livre e consciente de realizar a lavra de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida.
O dolo, portanto, apenas restará caracterizado quando ocorrerem evidências de que o titular do direito minerário está explorando de forma clara e consciente a lavra de recursos minerais sem a devida autorização. Situações onde existem dúvidas e, especialmente, onde a legislação não é clara a respeito da regularidade ou não da atividade desempenhada, não podem gerar uma responsabilização penal. Nas lições de Roxin:
En la actualidad, el Derecho penal material ya no posee presunciones de culpabilidade que quebranten el principio in dubio pro reo. En los casos mencionados como ejemplos de ello, se trata, en realidad, sólo de excepciones aparentes.
Assim, durante a instrução de um inquérito policial para apuração de crimes minerários, torna-se essencial a produção da prova pericial com exame de corpo de delito, com demonstração clara e objetiva de onde está ocorrendo a lavra ilegal, qual área de alcance, quantidade de minério extraído, sua caracterização (minério, estéril ou rejeito) e todos os elementos pertinentes dependendo que cada recurso mineral explorado.
A prova pericial é essencial nos casos de usurpação mineral devido à natureza técnica das evidências envolvidas. Ela envolve a análise de amostras de solo, água e outros elementos, além da verificação de estruturas e equipamentos utilizados nas atividades ilegais. Essa análise é fundamental para determinar se ocorreu de fato a extração mineral sem a devida autorização ou licenciamento, conforme exigido pela legislação ambiental e mineral.
Nos tribunais, a prova pericial proporciona uma avaliação objetiva dos fatos, ajudando a elucidar questões complexas e muitas vezes técnicas que envolvem a atividade de mineração. Ao examinar amostras e evidências físicas, os peritos podem fornecer conclusões embasadas que apoiam ou refutam as alegações de usurpação mineral. Essa expertise técnica é crucial para evitar decisões baseadas apenas em presunções ou interpretações subjetivas dos fatos.
Neste aspecto, percebe-se ao longo das ações penais que são levadas ao Judiciário que o material probatório acostado geralmente é insuficiente. Não explicita a quantidade de material extraído, nem tampouco a metragem da área supostamente minerada, composição/tipo do material, se tiveram funcionários envolvidos, modus operandi, enfim, as peças acusatórias se resumem a mencionar genericamente que houve mineração irregularmente, sem a cubagem necessária para a apuração da volumetria e natureza do material.
Entende-se aqui um ferimento claro ao princípio do contraditório e ampla defesa previsto artigo 5º, inciso LV da CF/88.
Com efeito, acerca de tal direito fundamental, nos socorremos das palavras do Desembargador Néviton Guedes, do Tribunal Regional Federal da 01ª Região:
“Ninguém tem o desejo e muito menos a pretensão de ser acusado. Por isso, a afirmação de que o indivíduo tem o direito a uma boa acusação poderá – para muitos – encerrar verdadeiro paradoxo. Entretanto, superada a surpresa inicial, o fato é que, se ainda somos uma sociedade governada por leis e não pelo humor da opinião pública, facilmente se conclui que, na nossa ordem constitucional, existe um induvidoso direito fundamental a uma acusação justa, o que implica dizer: uma acusação precisa quanto à narração dos fatos, coerente quanto a sua conclusão (pedido) e, além de tudo, juridicamente fundamentada”.
O processo criminal minerário deve ser instruído com prova pericial completa e autêntica não podendo se limitar a indícios obtidos em sede de inquérito policial, sob pena de claro ferimento aos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa. A prova pericial não apenas esclarece os fatos, mas também protege os direitos do acusado, assegurando que a presunção de inocência seja respeitada durante todo o processo judicial.]
Inviável, sob outro enfoque, considerar que o procedimento lavrado
pela autoridade policial possa suprir a necessidade da prova técnica exigida pelo artigo 158 do Código de Processo Penal, porquanto não passa de mera peça informativa confeccionada por órgão que, embora detenha a função constitucional de polícia judiciária (art. 144, § 4º, CF), não supre a realização de perícia feita nos autos de processo judicial e sob o crivo do contraditório.
Constata-se relatório(s) sequer pode(m) servir como prova indireta da materialidade do fato (art. 167, CPP), pois, tratando-se de infração que deixa vestígio como é o caso dos delitos de usurpação aqui discutidos, torna-se obrigatório a realização do exame pericial específico.
Ada Pelegrini Grinover, Antonio Scarence Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho, a seu turno, enfatizam que "[...] o legislador brasileiro, preso de maneira injustificada ao antigo sistema da prova legal, erigiu o exame de corpo de delito direto ou indireto nas infrações que deixam vestígios como condição de validade do processo e da sentença (art. 564, III, b, do CPP), não podendo a falta ser superada nem mesmo pela confissão do acusado (art. 158 do CPP)" (GRINOVER, Ada Pellegrini, et alli. As Nulidades no Processo Penal. – 7ª ed., rev. e atual. – São Paulo : RT, 2001, p. 147).
Parece imprescindível, de igual forma, que uma prova técnica para caracterização de crime de mineração ilegal, tenha que haver uma participação direta da ANM – Agência Nacional de Mineração, que é o órgão responsável pela tutela dos direitos minerários da União. Só a ANM pode responder tecnicamente se houve não lavra ilegal e sem autorização.
Cabe a Agência Nacional de Mineração – ANM o dever de zelar pela exploração dos recursos minerais de maneira útil e eficiente, coibindo qualquer atividade irregular. É a ANM que fiscaliza a atividade e tem o poder fiscalizatório (poder de polícia) a fim de paralisar qualquer atividade exercida irregularmente.
Qualquer prova pericial realizada sem que tenha havido elementos provenientes de laudo da ANM nos parece prova insuficiente e inconclusiva, como de fato se tem observado em inúmeros casos de processos para apuração de crimes da Lei n. 9 no art. 55 da Lei 9.605/98 e art. 2º da Lei nº 8.176/91.
A prova pericial assim deve demonstrar claramente onde ocorreu a suposta lavra ilegal, especificação do minério supostamente
Do princípio in dubio pro reo nos crimes ambientais e de mineração ilegal
No ordenamento criminal vigora o princípio do in dubio pro reo, visto
que deve prevalecer a garantia da liberdade em detrimento a pretensão punitiva do Estado quando paira dúvidas acerca do cometimento da infração.
Cabe ao órgão acusador, o ônus de provar, além de qualquer dúvida razoável, a ocorrência das elementares do tipo e que a conduta criminosa foi praticada pelo réu, enquanto à defesa, por outro lado, basta a demonstração da verossimilhança do alegado.
Em consonância com o princípio do in dubio pro reo, é suficiente que a defesa produza prova que faça surgir no espírito do juiz dúvida a respeito dos fatos e das circunstâncias do crime, de modo que se o juiz, examinando a prova produzida pela defesa, ficar realmente em dúvida sobre a alegação do réu, deve absolvê-lo.
O princípio do in dubio pro reo, consagrado no direito penal, estabelece que, em caso de dúvida sobre a culpabilidade do acusado, deve-se decidir a favor do réu. Este princípio reflete a importância de proteger os direitos individuais e preservar a presunção de inocência durante todo o processo judicial. No contexto dos crimes de usurpação mineral, a aplicação rigorosa deste princípio é crucial, dada a gravidade das acusações e as consequências severas que podem resultar de uma condenação.
A prova pericial desempenha um papel fundamental na aplicação do princípio do in dubio pro reo. Ao fornecer uma análise técnica detalhada e imparcial, os peritos ajudam a dissipar qualquer dúvida razoável sobre a culpabilidade do acusado. Isso garante que a decisão judicial seja fundamentada em evidências concretas e não em meras suposições ou conjecturas. Assim, a prova pericial não apenas facilita a busca pela verdade material nos casos de usurpação mineral, mas também protege os direitos fundamentais do indivíduo frente ao poder punitivo do Estado.
Precedente importante do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em acórdão de lavra do eminente Desembargador Ney de Barros Belo Filho, aponta a necessidade de que no processo penal minerário a prova pericial seja produzida de forma completa, clara e sem que pairem dúvidas acerca da materialidade e autoria. Nas palavras do Des. Ney Belo:
“O que se verifica dos autos é que o réu foi indiciado pelo simples fato de estar presente no local e ter afirmado exercer atividade de garimpeiro. Para além desse fato nada mais existe, nem documento, nem perícia, nem apreensão, nem qualquer outro elemento de convicção acerca da participação do réu em crime que, por sua vez, sequer há provas seguras de sua ocorrência”
O princípio do in dubio pro reo estabelece que, na presença de dúvidas razoáveis sobre a culpabilidade do acusado, deve prevalecer a interpretação mais favorável a ele. Esse princípio é uma expressão do princípio da presunção de inocência e visa a garantir que nenhuma pessoa seja condenada sem que haja prova suficiente de sua culpa.
No contexto da prova pericial minerária, a aplicação do in dubio pro reo é particularmente relevante. Dada a complexidade técnica das questões envolvidas, a possibilidade de interpretações divergentes e a margem de erro nas análises periciais, razão pela qual a condenação deve se basear em prova pericial inequívoca e isenta de dúvidas substanciais.
Cabe ao juiz realizar uma análise crítica do laudo pericial, considerando eventuais incertezas e inconsistências e no caso de dúvidas persistentes quanto à materialidade do fato ou à autoria, deve-se decidir em favor do acusado.
Considerações Finais
A prova pericial no processo criminal minerário é um elemento decisivo para a formação da convicção judicial, exigindo rigor técnico e metodológico. Para que uma prova pericial seja completa e condenatória, é fundamental que atenda a critérios de imparcialidade, metodologia adequada, documentação transparente e permita o contraditório e a ampla defesa. Além disso, o princípio do in dubio pro reo deve sempre ser observado, assegurando que nenhuma condenação ocorra na presença de dúvidas razoáveis sobre a culpabilidade do acusado. Dessa forma, a justiça penal minerária poderá ser efetiva e equitativa, resguardando os direitos fundamentais dos envolvidos.
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